A música fala diretamente ao inconsciente, criando ressonâncias emotivas que são únicas. É bem verdade que um poema ou um quadro também afetam pessoas de modo diferente. Mas a mensagem é mais concreta, mais direta. Existe algo de imponderável na música, um apelo primordial, algo que antecede palavras ou imagens Marcelo Gleiser é professor de física teórica do Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro 'O Fim da Terra e do Céu'. Artigo publicado na 'Folha de SP': A música, dentre as artes, é a mais misteriosa. Como podem os sons invocar emoções tão fortes, alegrias e tristezas, lembranças de momentos especiais ou dolorosos, paixões passadas e esperanças futuras, patriotismo, ódio, ternura? Quando se pensa que sons nada mais são que vibrações que se propagam pelo ar, o mistério aumenta ainda mais. A física explica como ondas sonoras se comportam, suas frequências e amplitudes. A biologia e as ciências cognitivas explicam como o aparelho auditivo transforma essas vibrações em impulsos elétricos que são propagados ao longo de nervos para os locais apropriados do cérebro. Mas daí até entender por que um adágio faz uma pessoa chorar, enquanto outra fica indiferente ou até acha aquilo chato, o pulo é enorme. A música fala diretamente ao inconsciente, criando ressonâncias emotivas que são únicas. É bem verdade que um poema ou um quadro também afetam pessoas de modo diferente. Mas a mensagem é mais concreta, mais direta. Existe algo de imponderável na música, um apelo primordial, algo que antecede palavras ou imagens. Não é por acaso que a música teve, desde o início da história, um papel tão fundamental nos rituais. Ritmos evocam transes em que o eu é anulado em nome de algo muito mais amplo. Quando um grupo de pessoas escuta o mesmo ritmo, as separações entre elas deixam de existir, e um sentimento de união se faz presente. Mais explicitamente, todo mundo gosta de sambar com uma boa batucada. E todos no mesmo ritmo, ou seja, indivíduos se unificam por meio da dança. A dança dá realidade espacial à música, tornando-a concreta. A música foi o primeiro veículo de transcendência do homem. Daí sua presença tão fundamental nas várias religiões. E ela foi, também, a primeira porta para a ciência. Tudo começou em torno de 520 a.C., quando o filósofo grego Pitágoras, vivendo na época no sul da Itália, descobriu uma relação matemática entre som e harmonia. Ele mostrou que os sons que chamamos de harmônicos, prazerosos, obedecem a uma relação matemática simples. Usando uma lira, uma espécie de harpa antiga, ele mostrou que o tom de uma corda, quando soada na metade de seu comprimento, é uma oitava acima do som da corda livre, portanto satisfazendo uma razão de 1:2. Quando a corda é soada em 2:3 de seu comprimento, o som é uma quinta mais alto; em 3:4, uma quarta mais alto. Com isso, Pitágoras construiu uma escala musical baseada em razões simples entre os números inteiros. Como essa escala era de caráter tonal, os pitagóricos associaram o que é harmônico com o que obedece a relações simples entre os números inteiros. E foi aqui que eles deram o grande pulo: não só a música que ouvimos, mas todas as harmonias e proporções geométricas que existem na natureza podem ser descritas por relações simples entre números inteiros. Afinal, formas podem ser aproximadas por triângulos, quadrados, esferas etc., e essas figuras podem ser descritas por números. Portanto, do mesmo modo que a corda da lira gera música harmônica para determinadas razões de seu comprimento, os padrões geométricos do mundo também geram as suas melodias: a música se torna expressão da harmonia da natureza, e a matemática, a linguagem com que essa harmonia é expressa. Som, forma e número são unificados no conceito de harmonia. Pitágoras não deixou as suas harmonias apenas na Terra. Ele as lançou para os céus, para as esferas celestes. Embora os detalhes tenham se perdido para sempre, segundo a lenda apenas o mestre podia ouvir a música das esferas. Na época, ainda se acreditava que a Terra era o centro do cosmo. Os planetas eram transportados através dos céus grudados nas esferas celestes. Se as distâncias entre essas esferas obedeciam a certas razões, elas também gerariam música ao girar pelos céus, a música das esferas. Pitágoras e seus sucessores não só estabeleceram a essência matemática da natureza como levaram essa essência além da Terra, unificando o homem com o restante do cosmo por meio da música como veículo de transcendência. (Folha de SP, 14/12) |
sexta-feira, 28 de maio de 2010
A música das esferas, artigo de Marcelo Gleiser
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