Após uma década do anúncio do genoma humano, diversos resultados incríveis foram obtidos: do genoma Neandertal até um organismo sintético, só pra citar os mais óbvios. Mas a consequência mais intrigante dessas pesquisas foram resultados da genômica comparativa.
A comparação entre sequências dos diversos genomas permitiu começar a encontrar pistas sobre a essência do humano moderno, as variações que distinguem o Homo sapiens dos outros animais, inclusive de outros humanos. Nessas variações genéticas estariam o segredo que fez com que nossa espécie florescesse.
Mas a genômica pode fazer mais do que isso. Comparando as sequências de pessoas vivas, é possível acompanhar como as pressões evolutivas atuaram durante nosso passado recente. Junto aos dados antropológicos sobre a migração humana fora da África, podemos refinar essas informações para ter uma visão mais precisa da evolução dos diferentes grupos humanos, inclusive de fatores que nos tornam diferentes, como inteligência e comportamento.
Esse tipo de genômica já vem sendo aplicado, ainda que de forma tímida. Deixamos apenas de pesquisar os riscos genéticos de doenças entre grupos humanos e estamos olhando para outros fenótipos, como personalidade, propensão religiosas, habilidade de investimento.
A árvore genealógica dos africanos e seus descendentes, começa no nordeste africano. Muitas evidências apontam para aquela região como o local que de surgimento do Homo sapiens. Para pessoas sem origem africana recente, a jornada começou a partir de um gargalo evolutivo cerca de 60 mil anos atrás, que se abriu em migrações humanas para o resto do mundo.
O gargalo corresponde aos pioneiros que cruzaram o estreito de Bab El Mandeb e começaram a popular o planeta. Até então, existiu pouco cruzamento entre esses grupos pioneiros, permitindo que diferenças locais emergissem.
Essas diferenças acontecem por mutações genéticas ao longo do tempo. Muitas serão aleatórias, mas outras serão produtos da seleção natural. Não é fácil distinguir qual é qual, mas algumas das alterações encontradas são óbvias: estão em genes envolvidos em pigmentação da pele ou tipo de cabelo. Essas alterações são marcadores conhecidos de regiões geográficas distintas, que foram selecionadas por fornecer vantagens de sobrevivência em determinado ambiente.
Da mesma forma, alterações foram encontradas em genes que conferem resistência a determinados patógenos. Malária, tuberculose e pólio deixaram cicatrizes no genoma de algumas populações humanas e nos permitem reviver a história.
Interessante notar que a mesma tecnologia pode ser aplicada para fatores cognitivos como criatividade e inteligência. Quando esse tipo de resultado começar a ser publicado, os velhos argumentos sobre genes e ambiente terão que ser repensados. Além disso, se a interpretação de nossos dados publicados recentemente (Muotri et al, Nature 2010) estiver realmente correta, o problema pode ficar ainda mais complexo.
Nesse trabalho, mostramos que a propensão para doenças mentais com variações cognitivas podem ser geneticamente determinadas de uma forma não hereditária. Estudamos elementos do genoma conhecidos como L1 retrotransposons. Os elementos L1 são pedaços de DNA vulgarmente chamados de "genes saltadores". Esses elementos representam cerca de 20% do genoma humano e a maioria dos pesquisadores os consideram como "DNA lixo" ou mesmo "parasitas genéticos", genes-egoístas.
Os L1s são estruturas antigas do genoma, anciões genéticos. Estão presentes na maioria dos genomas dos organismos vivos. Sobrevivem ao duplicar-se e inserir novas cópias em outros locais do genoma, escapando de mecanismos moleculares de defesa, criados durante a evolução para frear a expansão dos L1 no núcleo celular. Em 2005 mostramos que isso acontece com muito mais frequência durante o desenvolvimento do sistema nervoso.
Nessa "guerra" silenciosa que acontece no genoma de cada neurônio, a cada vitória de uma nova cópia de um retroelemento, surge a chance de alterar a função celular. Isso porque ao inserir-se no genoma, os novos L1 podem causar pequenas perturbações em genes vizinhos, afetando como o neurônio se comporta.
No trabalho recente, mostramos que mutações num gene chamado MeCP2, envolvido com síndromes do espectro autista, bi-polar e esquizofrenia, podem alterar a frequência dos genes saltadores no cérebro. Mas qual seria a consequência disso? Nossa interpretação é que o cérebro de cada pessoa é esculpido durante o desenvolvimento por um processo de seleção natural.
Neurônios são selecionados pela habilidade de fazer conexões e gerar redes neurais funcionais. Se em todas as pessoas esse processo fosse idêntico, não haveria variabilidade cognitiva alguma.
Mas, ao adicionarmos um fator aleatório para a seleção agir, como as novas cópias de L1, deixamos o processo variável. Ao identificarmos um mecanismo molecular que regula esse processo no cérebro de pessoas portadoras do espectro autista, especulamos que isso possa contribuir para as "habilidades" inerentes desses indivíduos, muitas vezes superior à média da população humana.
Parece uma proposta ousada - mas não é. O sistema imunológico também usa um sistema de mutação aleatória no DNA para gerar a variabilidade necessária nas células que reconhecem os milhares de patógenos que nos atacam diariamente. E mais, os dois sistemas (nervoso e imunológico) estão em constante interação com o ambiente, buscando um equilíbrio.
Se nossa hipótese estiver correta, levará a uma ironia um tanto desconfortável. Ninguém duvida que inteligência e criatividade possuem fatores genéticos. Estudos com gêmeos idênticos e não-idênticos já provaram isso antes. Também, ninguém questiona as forças de uma boa educação e um ambiente favorável.
Mas parte da diferença entre as habilidades cognitivas humanas, aquilo que gera um Picasso ou um Einstein, pode muito bem ser uma loteria literalmente. E essa loteria genômica durante o desenvolvimento pode ter sido responsável pela vitória evolutiva do Homo sapiens, gerando indivíduos capazes de liderar grupos humanos nas mais difíceis situações ambientais.
Nota: Alysson Muotri é biólogo molecular, pós-doutor em neurociência e células-tronco e professor da Faculdade de Medicina da Universidade da Califórnia (EUA).
Artigo publicado no G1 no dia 10 de dezembro.
Texto retirado do Jornal da Ciência
1 comentários:
Muito interessante o artigo Paiva!
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